31 de março de 2024

Espreito pela fenda que abre para o teu passado, e encontro a tua cara limpa, imaculada, aberta. Ainda não tinha acontecido aquilo que a mudou, que a tornou mais terna. Eu não sou a razão da tua raiva, a ameaça, o elemento a excluir. A narrativa não é essa, nem para mim. Vou-me levantar e fazer um frango. É páscoa e há que perfumar a casa com qualquer coisa. Os sentidos, as sensações, o corpo, é isso que torna a vida, vida, não é? Eu não sei o que ando a fazer há tanto tempo sem lidar com o que realmente se passa. É absolutamente sempre o mesmo sentimento, mas às vezes eu escapo para esses lugares, para o prado, para o lago, onde estão as mulheres nuas que me dão banho e me envolvem. Tu és tudo isso quando te penso, mas não és um sitio onde se chega, pois não? Aprendi contigo a substância, o tempo da transformação. Não me quero novamente perder em mim, não quero mais esquecer que isto sempre existiu antes de ti. Tu chegas e deixa de estar visível a solidão, tu não és a causa mas também não és a cura. Acalmas tudo isto, mas não podes ser a única. Se fores a única, passas de mulher a objeto de consumo, e tu não és igual ao frango. O que quero dizer é que onde está a raiva devia estar o amor. Obrigada, obrigada mesmo. Não és responsável por mim, mas a vida realmente é tão melhor quando estás. Estava a dizer isso ao meu pai, o inverso disto, na realidade... Não há nada que ele possa fazer, eu não o culpo mais, mas também não consigo deixar de me sentir sozinha, mesmo quando ele está. Eu sei, quem se sente sozinha, é porque está mal acompanhada por dentro. E eu sei que ajudaria começar a entrar na realidade física do mundo. Tenho visto o quanto me tem custado viver ao fim de semana. É por isso que tenho de comprar um frango, de o cozinhar e continuar a existir, fingir que importa para alguma coisa tudo isto. Eventualmente amanhã acordo melhor, e posso organizar a minha vida, por hoje só tenho mesmo o frango...

Sem comentários: