23 de março de 2023

     Sempre, para mim, fora muito perigoso entrar numa relação, nesse espaço de intimidade em que me permito ser vista. Perto de mais, o espelho vai apresentando alguns contornos que sempre escolhi não olhar, mas sobretudo, não mostrar. Quando fomos habitar a mesma casa, fiquei inevitavelmente exposta a que me visses. Os teus olhos, para mim tão preciosos. Tu, a dádiva que tinha entrado na minha vida, tu a beleza suprema, o meu projeto mais querido. 

    Eu nunca consegui existir sem o outro, porque eu nunca consegui suportar os meus defeitos, nunca os consegui integrar como coisas válidas e reais, mas sempre como aquilo que terá afastado os outros, os primeiros, os mais antigos. Nunca me senti merecedora de ser inteira, inteira para os outros - ou para mim. Estar sozinha comigo sempre foi algo que evitei, principalmente de noite, quando as pessoas se fechavam nas suas casas. Imaginei sempre alguém que me salvasse de mim, que me ensinasse a lidar comigo, que transformasse as minhas ânsias em significados - como eu sempre tentei fazer com os outros. 

    Viver da dependência da existência de um outro, um qualquer, sempre dificultou a minha vivência aqui. Sempre foi difícil lutar por mim, pelo meu futuro. Quando o fiz foi sempre para agradar a alguém. 

    Quando relembro o que se passou, compreendo a necessidade de tudo isso. Queria tanto ser suficiente, queria tanto que fosses feliz, que quando não aguentaste mais, eu sucumbi a toda a culpa antiga de ter afastado os meus pais, e agora ti - será que eu merecia mesmo estar sozinha? E depois, veio tanto amor, de dentro e de fora, uma enchente de compaixão, que fertilizou as partes que antes tinham medo. Eu já não era a mesma, eu tinha crescido e estava hoje muito mais capaz de me amar - para além do outro. Ela deixou-me mas eu fiquei comigo. 

    É a primeira vez que estou bem, sem ter de ter a ideia de um outro. Eu tive de reviver esta ferida, de correr todos os riscos da intimidade, da idealização, para me libertar dela, e poder finalmente ser inteira - para os outros, mas sobretudo, para mim. 

2 de março de 2023

 Este ano muito me esforcei para não desiludir, para a agarrar, para que quisesse ficar. Nunca nada tanto me podia transformar, quanto aquilo que foi. Aquilo para que tive de olhar, e aquilo que escolhi não ver. Recordo melhor a ausência do que a presença. E porém...

Tudo o que de ingénuo havia, se tornou movimento regressivo até uma infância que fui forçada a revisitar. Construímos tantas coisas em cima do que foi, que perdemos o que lá estava. E porém... Onde é que eu começo e o outro acaba? O que é que é meu, o que é que eu não sou? Quando é que me perdi de mim para caber... Não havia lá lugar nenhum. Nasci para gostar de mim, para aos outros ensinar a amar. Nunca tanto devia ter duvidado do que já sabia. Eu estava certa desde o inicio. A ela não vi nunca como igual, confundi-a com uma dádiva, um milagre, e havia algo em mim que eu não gostava, que gritava que eu não merecia. Foi preciso ficar pequena para perceber que já não o sou.