7 de novembro de 2021

 Chegaste e contigo se abriram tantas possibilidades. Se nunca pude sonhar um sitio estável, perene, contigo emergiram tantos sonhos que nunca quis assumir, desejo profundo de me unir a alguém, partilhar o resto da vida de forma concreta, tangível. Desdobrar-me num sitio de amor, para além de nós, na família que iremos criar. A primeira resistência que ofereci serviu para me proteger, salvaguardar estas pulsões que há muito borbulhavam no interior de mim. Mas tu estavas tão convicta, tão certa daquilo que eu nunca pude viver, que eu mergulhei nessa jornada rumo à concretização desse ideal. 

Deixar entrar esse sonho no meu consciente, atribui-me a mim uma certa responsabilidade. Quando amei pessoas ao longe, bem que podia sonhar, no ideal onde eu colocava o outro, eu punha lá todos os meus sonhos, delegando-os, permanecendo num lugar de impotência, repetindo os mesmos padrões, desculpando-me neles. Agora é diferente. Diante de mim essa possibilidade, a realidade do que somos e o terror de nos levar para um sitio mau. O terror de que vás embora quando vires que eu não consigo sempre ser aquilo que muitas vezes vês. Eu, habituada a esse jogo de olhares, esqueço-me de me ver inteiramente e mergulho no esforço de me manter sempre bela, nobre, elevada. Porque aprendeste de outra forma, tu insistes que não devo ter medo de ser inteira, falas da minha clivagem como um mecanismo imaturo, sem sentido, e eu lembro-me que também assim o percebi quando o estudei nas aulas... 

Nunca antes tinha percebido o que a minha terapeuta insistia em repetir - que eu também era merecedora de amor. Eu sabia que o era, como assim? Sabia e no entanto não o sentia. Elevava-me até ao meu ser superior, e tornava-me hipercrítica de mim própria. Cada coisas menos feliz era esculpida e pendurada na estante dos meus maiores falhanços. Eu não me permitir ser inteira, com tudo o que de humana tenho, eu não validar o que sinto e o que sou, eu a não ser contentor de mim própria, era eu a sentir que não era merecedora de amor... 

Não, ainda não acabei de me transformar.

 Nesta luta contra mim, eu perco sempre. Nas tentativas vãs de colocar fora de mim esta critica excessiva, eu acabo virando a agressividade contra mim. Debaixo da porta espreita o velho fantasma da minha infância. Devia ser melhor, devia ser como aquela que idealizo ser e que tantas vezes sou. Tropeço em detalhes menos glamorosos e sem que eu tenha qualquer controlo, eles agarram-se à minha perna como raízes que me prendem numa poça de solidão. Porque já sou mais crescida, lembro os mecanismos sãos que fui encontrando para me dar algum amparo, Leonor contentor. Dirijo-me então à biblioteca, abro um livro e começo a crescer noutros lugares, deixo as palavras ecoarem dentro de mim como caminhos novos que se estendem. Lá estou eu outra vez, na pressa de ser já outra coisa, conter o que sinto, passar à frente, manter-me inteira, integra, alta e nobre, com muito zelo para não magoar ninguém. Mas se ao menos tudo isto fosse por mim! Do fundo do vaso, um medo latente se esconde, medo que é motor, ferida narcísica que se abre de rompante. Para os outros eu tenho todas as desculpas, todas as justificações. Afinal, antiga é a mágoa de não ter sido cuidada nos momentos em que não era luz. Se ela tivesse ouvido os meus choros, ela estaria a abraçar a criança que dentro dela também chora. Ela não a quer ver, e por isso desculpa-se culpando-me. Sem espaço para ser, interiorizo uma voz que me paralisa, inibe, me mantém bem arrumada, com uma mão sempre atrás das costas. Atenta, espero o momento certo para voltar para o seu colo. Se ao menos o colo existisse sempre...