30 de junho de 2022

Há uns anos atrás, a minha amiga confessou-me que tinha medo que eu me distanciasse das pessoas por estudar filosofia. Ela temia que eu me tornasse sábia de mais para estar aqui junto dos outros. Sorri porque achei uma afirmação elogiosa. Na altura tinha acabado de descobrir que tinha o ascendente em balança, e estava maravilhada por saber que eu era insuflada pelo dom da simpatia, diplomacia e beleza. A palavra Virtuosa era a que mais gostava que me fosse atribuída e nessa altura acreditava num amor amizade, um amor atento, compreensivo, curioso, contemplativo. Sentava-me então, de quando em quando, frente a ela a ouvi-la falar sobre os seus desgostos por outras pessoas que não eram eu. Junto de mim o calor, fora da minha casa, o sofrimento da carne. 
Porém, mal ela abandonava aquela cave, eu ia-me revoltar junto dos outros, e na azáfama das noites, ia cair nos braços que me agarrassem. Lá, junto deles eu vingava toda a dor de não ser aquela que ela escolhia. Dentro do monge vivia uma poderosa, destruidora e destrutiva, diva. Tudo o que era do espirito dissolvido no mijo, na sujidade das emoções mais profundas.
A minha amiga continua a ver o sábio monge que fui pontualmente nessa altura, mas eu não. Mergulhei na contradição para começar a integrar. Acalmei a diva quando abanei o monge, e hoje não sou mais nenhum deles. Ser real e inteira, e não clivada e extremada, que trabalheira... 
Sou tão pouco inteira ainda, que todo o conhecimento que vou adquirindo vai se cristalizando em mim, como um fatalismo. Sou tão pouco inteira, que tudo me destrói. A fronteira cada vez mais ténue entre o passado e o presente, os dois tempos sobrepostos, confundidos, a olhos nus. Antes talvez também o estivessem, mas eu não os via. A minha amiga, ela não vê nada, ela corre e nunca pára. Tenho várias assim. Eu olho e atento-me a pensar que não pode ser a escolha certa, mas no fim do dia sou eu quem eu vejo chorar, todos os dias é a mim que eu vejo a destruir, a sabotar, a ser tão pouco amorosa consigo mesma. O monge já não brilha, a diva já não grita, e os outros eu observo, e de tanto os ver, eu perco-me deles. Não lhes posso dizer o que vejo, porque isso levá-los-ia para outro lugar. Então, fico aqui a pensar, se os olhos me estão realmente a dar a força que eles ainda têm, que ainda têm, talvez, por nada ver...

15 de junho de 2022

 Esta manhã, mergulhei até ao Alentejo, lá para a casa mais feliz da nossa infância, onde me cruzei com a minha terapeuta. Ela estava naquela casinha de madeira onde brincávamos, só que a mesma tinha sido colocada no cimo de uma árvore. Avistei-a, para lá do muro, do muro de outra casa onde cresci - casas dentro de casas - as mesmas emoções em lugares diferentes. Era a primeira vez que via a minha terapeuta fora das quatro paredes do consultório, e lembro-me de sentir de igual forma do que quando cruzava a minha professora preferida num outro lugar. Ela viu-me da sua janela, que apressou em fechar - tinha chegado um cliente. Eu, com quem estava, comentei que era a Sara, que era o meu modelo, que eu seria como ela, ela que recebia os seus pacientes numa casa de madeira em cima de uma árvore. 

Mais tarde, caminhava para o alpendre, e ocorreu-me que não poderia ser verdade, que a minha terapeuta não podia estar a receber pessoas naquele lugar, no lugar da minha infância. Comentei com o meu primo enquanto me ria "oh, vê-se mesmo que isto é um sonho".  Imediatamente aquilo que me parecia astuto, transformou-se em pânico, quando me apercebi que estava presa num lugar só meu, onde não havia outro que existisse. Ali tudo era minha criação e ali eu estava sozinha. Voltei a repetir a mesma frase, desta vez mais hesitante: vê-se mesmo que isto é um sonho. Os segundos que se seguiram foram os de um pesadelo - tinha tanto medo que até no meu sonho, o meu primo deixasse de existir - mas ele respondeu. Quando o fez, toda a ansiedade reduziu e voltou aquele a ser um lugar seguro. Pensei que, até podia ser um sonho, e eu até podia saber, mas que a presença real ou imaginária dele, de um outro, era o suficiente para não sentir aquela angústia. Eu estava ali naquele lugar só meu, mas para esse lugar eu podia trazer quem eu quisesse. E assim o continuei a fazer no resto o tempo que sonhei, e assim o torno a fazer, só que agora desperta...

Para lá da angústia, estava mesmo a liberdade.