17 de setembro de 2021

Ontem fui perseguida por um velho sentimento. Vi-o a pairar em cima de mim, a beliscar-me, a tentar invadir o meu corpo que, afim de me proteger, criou por cima da pele uma camada de medo. Aquelas ideias irreversíveis a voltarem, eu ia enlouquecer... mas calma Leonor, se estás neurótica, com medo do que está para vir, inundada em terror, lembra-te daquela página em branco onde escreveste aqueles apontamentos: um ataque de pânico, é agudo mas transitório. Os neuróticos não ficam psicóticos, Leonor, repete enquanto inspiras. E via-me na fronteira entre esta realidade e uma em que ficaria eternamente apartada dos outros, presa da minha própria dor, num medo constante, paralisante, que vinha de dentro de mim. Vou morrer e serei sempre esta inútil que nada fez, que não resistiu. Morrer era ficar sozinha, ficar sozinha seria a minha morte. Lembro-me de pensar no que já tinha feito, no que deixei narrado em tantas páginas, no valor que descobririam em mim. Eu não ia somente morrer, eu teria tido valor para alguém - há pessoas que te admiram Leonor, lembra-te... Mas certos erros pareciam irreversíveis, eu era eles, e eles eram suficientes para eu vir a ser abandonada.

- Os neuróticos não ficam psicóticos, Leonor, respira.

6 de setembro de 2021

Nunca tive muito boa memória fotográfica. É comum confundir a cor dos olhos das pessoas, passados anos a conviver com elas. Vejo bem o que está perto de mim, mas na ausência não me consigo lembrar das feições. Afim de colmatar alguns espaços em branco, começo a retocar com aquilo que eu creio que será teu, e quiçá tendencialmente acabo embelezando-te. Ao fim de uns tempos eu já nem sei quem és realmente. Acabas sendo uma sensação em mim, e é injusto que assim o seja. 

Tinha tanta a certeza do controlo que tinha, da calma, das coisas palpáveis que iam acontecendo, porque era real. Dia após dia, a realidade do que era. Hoje é confuso para mim a forma como fiz exatamente aquilo que me orgulhara de não estar a fazer - pela primeira vez em muitos anos. Perdi-te. És já outra coisa que não tu, e eu estou a ser precisamente o que sempre fui. Fiel a algo que só existe em mim, devoção, passividade, lugar de autocomiseração. Do que é que eu estou à espera? Certamente que algo aconteça, que alguém me leve para longe de mim. 

Quando chega a noite, é bom que haja com quem falar, beber para me acalmar, esquecer o medo da noite, e espero que a tua memória me dê coragem para voltar para casa, caminhar por entre as ruas com a certeza de que tenho um lugar onde quero estar. Já não tenho oito anos, e parece que tenho duas hipóteses - sacrifico o meu corpo afim de acalmar este velho medo, ou ganho finalmente coragem para olhar para a noite, sem álcool e sem ti. 

Não vai ser assim tão mau Leonor, tu lembras-te como viveste estes últimos anos, na expectativa do momento em que tudo ia mudar, em que receberias noticias da morte da tua mãe, e na ansia de controlar os eventos, imaginavas sempre que serias inundada por um enorme terror. Em prol de fugir ao terror, agarraste o carinho de quem achavas que precisavas, prolongando o sofrimento de ambas. Depois quando finalmente o dia chegou, não foi assim tão mau. Foste ao quarto onde a tua mãe vivia e friamente escolheste as roupas de que gostavas, e voltaste com elas para casa. A tua mãe ia morrer e no espaço do terror, descobriste a coragem.