7 de março de 2019

Há sempre duas tendências predominantes aquando observamos um fenómeno: a de observar à luz do Bem, e à sombra do Mal. Velha dicotomia, herança de Nosso Senhor. Há algum tempo atrás comecei a reinventar o meu passado, a aprender a encontrar-lhe algum encanto, reconstruir as pontes entre o que fui, o que sou hoje e desejo ser amanhã. Parece que sou eximia em encontrar causas e altos ideais para aquilo que quero ser, aumentando continuamente a discrepância entre aquilo que é e o que devia. Pouco dotada serei então para aceitar o que ainda não é - e maldito seja este advérbio que não me deixa só ser. Parece que ando muito presa numa consciência sobre-humana, e parece que não consigo aceitar que o meu corpo existe, e que os seus desejos primários têm lugar dentro do que sou. Sobretudo quem sou eu? Se não tenho medo de me reivindicar de forma original, parece que nem reconheço a coragem que sublinha esse gesto. Parece que sou tão boa a louvar o que não é meu, o que pertence às ideias, o que pertence às causas, e aos Outros, que me esqueço também que existo e que sou corpo ao qual tenho de atender e fornecer calor. Afinal terá sido assinalado o afecto como uma das variáveis fundamentais para o desenvolvimento de uma criança. E pouco me importa o que aconteceu - ou não aconteceu - dessa experiência não é mais a tristeza que ecoa, mas talvez a revolta por ter herdado dessa tendência para desprezar o que sinto e preciso.
Na verdade foi através desta capacidade de cuidar dos outros, de lhes atender às necessidades, de encontrar conforto para todos, que fui cultivando boas e sinceras relações. O mesmo não terá sido possível num contexto mais intimo, e bem posso tentar arranjar características externas, mas terei de aceitar e desconstruir a responsabilidade que terei então na relação que eu ajudo a estabelecer. Afinal a sina não está traçada, não tem de ser como sempre foi. Quem quero enganar... Eu também quero afecto, prazer, felicidade...

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